terça-feira, 29 de março de 2011

Cinzas

Foi-se o tempo em que o cansaço da mente ou do corpo vencia a insônia. Na tentativa de estar viva no dia seguinte, levanto para fumar um cigarro. Não que seja de fumar, nem que tenha nada contra, levanto para fumar e pronto. Cigarros sempre me deram sono. Assim, de silhueta despida, sento na varanda e começo o ritual. Sem luz, o isqueiro até parece uma ponta de esperança. É disso que mais gosto em cigarros, me hipnotiza eles queimando, devagar. É como um prazer calmo, quase torturante.

Há poucas estrelas, mas está bonito. Procuro a lua, nada. Deve estar atrás do telhado, escondida, deixo-a. Sou lá de competir com a lua? Deito no chão só para sentir o frio, uma necessidade de sentir qualquer coisa. Lembro dos anos passados, quando colocávamos o colchão na varanda para conversar amenidades olhando o céu até de manhã. Luz demais sempre incomodou. Noites boas aquelas.

Sinto aquela liberdade de não estar sendo vista, mas o pensamento infeliz não para de perguntar por que cargas d'água fumar o cigarro. O cheiro e o hálito vão irritar depois. Justo na hora de dormir o sono que tanto queria. Penso em apagar logo. De tantos vícios, melhor não começar um novo. Vou até o fim tragando saudade. Não sei se de agora ou de antes, mas saudade é um sentimento que sempre está. De qualquer coisa.

Escovar os dentes, comer um biscoito de sal, escovar de novo. Maldito gosto que não larga! Ah, e as contas? Quantas contas! Todas e nenhuma minha. Quantas vezes uma pessoa pode se descobrir? Se as coisas pudessem acontecer ao menos sem motivos. (E o que machuca mais que os motivos?) Que sede... Porra de biscoito de sal!

No caminho, a foto do porta-retrato já não aborrece. Isso preocupa. Assusta um pouco. No espelho, a tez e o busto anêmicos não dão nenhum sinal de beleza. Ao contrário - disputam com os cabelos secos e desgrenhados uma imagem que pede socorro quase desesperadamente. A alma é inquieta, o corpo pesa. Apago a luz para ouvir melhor a canção de ninar dos morcegos que passam pela janela. A tinta já não tem cor.

3 comentários:

Gentil Martins dos Santos disse...

Gostei daqui - Poço segui?

Gentil

Ju Carvalho disse...

Claro. Será bem vindo sempre!=)

Gentil Martins dos Santos disse...

Constatação...


FOI-SE O TEMPO EM QUE O CANSAÇO DA MENTE OU DO CORPO VENCIA A INSÔNIA.
NA TENTATIVA DE ESTAR VIVA NO DIA SEGUINTE
(...) levanto para fumar um cigarro. Não que seja de fumar, nem que tenha nada contra, levanto para fumar e pronto. Cigarros sempre me deram sono. Assim, de silhueta despida, sento na varanda e começo o ritual.

Parabéns Juliana, o desejo de “estar viva”, de viver, a “esperança”


“Sem luz, o isqueiro até parece UMA PONTA DE ESPERANÇA”.


Oh, não Juliana!


“É DISSO QUE MAIS GOSTO EM CIGARROS, ME HIPNOTIZA ELES QUEIMANDO, DEVAGAR. É COMO UM PRAZER CALMO, QUASE TORTURANTE”.


Masoquista! (rs,rs) é preciso não se permitir que se queime. É preciso permanecer ‘verde”. Mas isso você é, mas que queimando como lenha verde.


O louco do Nietzsche sempre elogiava os narcóticos orientais, porque, segundo ele, este tem efeito mais demorado. Ao mesmo tempo isto é parte dum ritual da dominação da natureza, próprio do pensamento, da racionalidade, ocidental, o que os filósofos que trabalho chamam de racionalidade instrumental. A vida moderna Juliana, é uma vida sem vida, “pessoas sem respostas”, diz um filósofo Uspiano, Paulo Arantes, pessoas incapazes de dar uma resposta a partir do eu, elas não tem o eu. Incapazes de experiência. São pessoas de relações prontas. E o espanto maior é que quando dão são fascistas, não enxergam o outro, ou melhor, o outro não é nada para elas senão objetos, animais, etc. o nietzschianos, por exemplo. Mas existe exceção, você, por exemplo.


Adorei seu espaço. Obrigado por permitir que eu o siga.


Shakespeare, Hamlet
- “enquanto fruto verde só nos dá trabalho/ E assim maduro cai do galho./ É muito natural que nunca nos lembramos/ De pagar a nós, o que nós nos devemos,/O que a nós na paixão foi por nós prometido/Terminada a paixão perde todo o sentido” (Hamlet, III ato, II cena).

Bjs Juliana