quinta-feira, 5 de maio de 2011

Esquizofrenia

No amanhecer daquele dia, viu-se em um quarto grande, de teto alto, quase um galpão. Tinha as paredes infinitamente brancas, um guarda-roupas de madeira, modelo antigo, que cobria toda a extensão de uma parede, e duas camas de casal, enormes. Estava atônita, observou que na cama ao lado haviam duas pessoas e não conseguiu identificá-las. Quando se deu conta, em seu próprio leito, que nem dela era, estava o corpo nu de um homem que, vendo sua inquietação, ajeitou-se entre seus seios como se dissesse que ali era confortável. Um choque, não pode ser! Assustou-se com a pessoa que ali estava mas, sem ao menos lembrar dos acontecimentos, se entregou ao momento e afagou os cabelos do amante. Amaram-se então de maneira tão intensa que todos os sentidos se deram ao máximo. Um amor cúmplice, não morno. Entendeu que levaria aquele cheiro consigo.


Depois de longa troca de carinhos, levantou, tinha de ter algo atrás daquela porta. Precisava descobrir em que lugar a noite anterior lhe escarrara. Enrolada num lençol, tentou mais uma vez reconhecer oz vizinhos de cama quando ouviu uma voz perguntar: - Vai para onde? Volte para cá! - Virou-se rápida, horrorizada. Já não era o mesmo homem que estivera do seu lado há segundos. Seria um pesadêlo? Quem ocupava o espaço, por si próprio, já cumpria esse papel de aterrorizar sua vida há tempos. Ele forçava um riso bizonho com seus dentes separados, quase serrados e sua tez grande. Antes daquilo acontecer, tinha que assumir, era um conto de fadas.

Sentiu as pernas finalmente fracas e entendeu que tinham lhe dado algo. Juntou forças e saiu porta afora, achou na cozinha um grupo de pessoas com quem nunca tivera muita afinidade. Inclusive a louca espalhafatosa que sempre falava mais do que devia e em horas inadequadas. Aquele compartimento da casa era totalmente diferente do quarto. Era uma cozinha rude, de interior. Tinha uma porta de madeira e uma lasca enorme arrancada, dando vizão para um quintal arenoso e tão grande que não se enxergava o fim. Cumprimentou as pessoas, mais por educação que por gosto, e ficou proxima à saída, planejando, desesperadamente, correr até achar um lugar familiar.


Surgiu do outro lado da frestra um homenzarrão, gordo e mal abarcado pela camisa vermelha que já tinha alguns furos e era moldada por aquele bucho enorme que carregava. Fez que não o viu, mas percebeu quando as unhas imundas entraram no bolso da calsa azul surrda e puxaram um canivete enferrujado. Ficou estupefada, sem fala alguma, só os olhos esbugalhados de medo. A respiração ofegante parecia tomar conta do mundo. Percebendo sua presença o homem, que bufafa como um velho e fedia a cachaça, fez sinal para que abrisse a porta. Apelou para a tagarela que foi ao seu encontro e se concentrou um milésimo segundo na porta, como se tivesse ainda um mundo de fofocas a lhe esperar, afirmando não haver nada ali e dando aquela sua gaitada insuportável que desrespeitava qualquer ser humano que quisesse ser levado a sério. Voltou a olhar e o bufão continuava lá e sorria com os dentes podres e um ar maldoso, passando a lâmina na pele enquanto um suor escuro escorria dos cabelos ralos até as dobras do imundo pescoço. Definitivamente, não sairia por ali, a situação já era agoniante.


Veio aquela cibita infeliz perguntar como foi a noite anterior. Fechou os olhos e lembrou de quem realmente estivera ao seu lado. Sentia-se ainda tonta com toda a situação. Quando voltou a si, já não estava lá. Correu a vista e reconheceu-se novamente em um quarto, dessa vez menor, cheio de colchonetes, lembrava muito um alojamento. Para sua alegria, logo entraram pela porta dois rostos conhecidos. Tentou agir naturalmente, não queria parecer louca, mas tudo o que tinha vivído até então e o próprio fato de ter aparecido ali, a estava pertubando imensamente. Deitou no colchão e os dois amigos transformaram-se em duas cabeças alegres e saltitantes que giravam em torno de seu rosto contando firulas que ela, definitivamente, não queria saber. Sentiu o juízo palpitar com toda aquela felicidade mesquinha e teve uma leve ânsia de vômito. Quase desmaiada, pediu ajuda para uma das cabeças, que a levantou e direcionou para um bosque. Pegou seu aparelho celular, que por qualquer milagre estava em suas mãos, e mandou uma mensagem para alguém que, iludiu-se, a tiraria dali.


A imagem da manhã não a deixava em paz. Sempre alguém passava e perguntava pela figura que estivera com ela, dando notícias de que estava apaixonado e cantava seu amor aos quatro cantos do mundo, dando detalhes de seu corpo e até de sua performace. Sentiu-se como Alice, por um momento. Pensou até buscar alguma saída praquele buraco em que se metera. Esperou em vão e voltou para o colchonete do alojamento. O corpo foi enfraquecendo até perder totalmente as forças, apagou. Logo já não haviam outros colchonetes e sobre o seu corpo, três bilhetes, provavelmente das cabeças flutuantes. Olhou dois deles e achou tolos mas o terceiro chamava atenção, era de alguém especial. Palavras cruéis. Chorou vendo seu estado de putefração e, no tremor da carne, já febril, surgiu num terceiro quarto.


Aquele sim, era conhecido! O corpo continuava pesado e ouviu, ao longe, uma voz conhecida a cantarolar qualquer música insuportável. Era já outra, fria pelas experiências. Quando enxergou a beata, não exitou. Perguntou o que estava acontecendo, queria esclarecer tudo aquilo. A negra cessou seu hino e fitou-a como quem perguntasse - Como assim, está acontecendo algo?-. A irritação daquela resposta a fez endemoniada. Ria alto e tinha a cara desconfigurada, subia pelas paredes enquanto arrancava os cabelos e sua voz exalava maldade e carnificina. Estava novamente presa nas garras podres do homem. Entendeu ali que não mais se livraria, aderiu.

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